27 de out. de 2008

Únicos, os outros

Todos nós fomos programados para acharmos que somos seres únicos. Somos diferentes um do outro, não temos nada em comum. Ninguém nunca antes sentiu o que sentimos agora; ninguém nunca se apaixonou como nós, ninguém nunca amou como nós, ninguém nunca odiou como nós, chorou como nós, riu como nós, sofreu como nós, pensou, sentiu como nós. Ninguém tem uma vida como a nossa, por isso ninguém sabe como nós sabemos como nós somos. Ou pensamos que sabemos ser quem somos. Nós somos o que sentimos, e sentimos o que pensamos sentir, o que infraconscientemente queremos sentir. E pensamos, e sentimos, e somos.

Mas outros são, ou foram, também, o que pensamos sentir sermos. Eles — os outros — também pensaram o que pensamos; sentiram e foram. Disseram-lhes que eram únicos — como a nós. Mostraram-lhes filmes com finais felizes, onde tudo acabava bem — como a nós. Disseram-lhes que era besteira o que sentiam, que passaria tão rápido como viera — como a nós. Entretanto...

Entretanto, isso tudo foi-nos dito por outros que também tiveram isso dito a eles. Podemos acreditar no que nos dizem os outros? Só se acreditarmos que estejam certos. Podemos descartar o que nos dizemos a nós mesmos? Só se acreditarmos que estamos errados. Mas os outros: os outros já passaram por isso! Os outros tiveram tempo de se entender. Os outros devem estar certos.

[Os outros, é claro, acreditaram no que os seus outros lhes disseram, e que foi-lhes dito por ainda outros. Ainda outros poderiam estar errados, poderiam ter pensado erroneamente, poderiam ter-se equivocado como é de costume à nossa espécie. Talvez o pensamento de um dos ainda outros estivesse incorreto, e estes passados a diante até chegar aos nossos outros, que tentam passarnos-los também.]

Enfim, o caos. Não sabemos quem somos se não nos disserem quem ser e não sabemos, quando o somos, se certos estamos em ser. Ou se cegos estamos de ver, escolha sua rima. Escolha sua vida, escolha seus textos. Não deixe que outros a escolham. Não deixe que eu a escolha: este texto é somente uma opinião minha, escolha-o como sua somente se também já for.

Para os que leram o texto, perdão: o texto não leva a nada. Sai do desespero e desembarca na falta de esperança, não é um guia, não ajuda. Apenas constata: nada sabemos, e assim foi desde o começo dos tempos.

22 de out. de 2008

Armários e o fim do mundo

A terceira gaveta do armário não abria.

— Árvore que o pariu! - disse Fulano, já que as crianças estavam na sala.

Fulano de Tal herdara o armário do seu tio-avô, Cicrano de Tal. Cicrano não gostava muito da família, nem dos seus sobrinho-bisnetos e muito menos dos animais de estimação. Principalmente quando vinham com aquela história de "cadê o titio, cadê?"— fora assim, inclusive, que a Luzirlene morrera. Pobre coelha. Mas, enfim: Cicrano não tivera filhos, por que nunca se casara. Não gostava de pessoas em geral. Logo, tendo os outros sobrinhos morrido em um trágico acidente com uma beterraba, Fulano era o único parente vivo.

— Deixa disso, amor - insistiu Beltrana, sua mulher - você já deve saber que não vai abrir...

— E se tiver alguma coisa importante dentro?

— Bom, você podia arrancar a gaveta inteira...

— Mas o armário é tão antigo.

— Ai ai.

— Ai ai.

Fulano sempre suspeitara de algum tipo de tesouro da família que aquele velho Cicrano podia ter escondido de todos, aquele safado. Talvez pudesse até vender por um bom dinheiro. Ou pelo menos pendurar na parede da sala, quem sabe. Mas, primeiro, ele tinha que abrir a gaveta.

— Pô, Fulo - era assim que ela o chamava - não vai abrir! O mundo vai acabar e você tentando abrir esse armário!

No último ano, não saíra para o trabalho sem antes tentar — durante um mínimo de meia hora — abrir o armário. Tinha até perdido peso.

Um dia, ele ficou doente. O dia inteiro em casa, para tentar abrir o armário. Mas ele nem conseguia se levantar direito da cama, quanto mais fazer força para abrir o armário. Dormiu bastante. Quando acordou, estava tudo escuro e notou que o chão estava tremendo. Fulano começou a gritar e a correr pelo quarto, quando notou que a gaveta havia se soltado com o tremor intenso.

— Senhor! Depois eu lhe rezo os 42 pai-nossos que eu prometi!

Com suas últimas forças, foi olhar o conteúdo da gaveta, mas tropeçou e era tarde: o mundo acabara.

12 de out. de 2008

As Cores

Outro dia eu vi uma borboleta. Pequena, tão pequena. Precisava comer mais. Ela me chamou a atenção; não era grande, mas me chamou a atenção por suas cores. Cores, cores, cores; nem sei o nome de todas as cores que aquela borboleta carregava consigo. Por que motivo carregam cores consigo? Chamou-me a atenção pelas cores, mas talvez nem quisesse me chamar a atenção. Azul, verde, branco, lilás... não lembro quais cores existiam com aquela borboleta.

Ela chegou, aparentemente, de lugar algum. Não apareceu só por mim — se assim fosse, teríamos passado mais tempo juntos. Ela chegou. Não sei por quê, mas ela chegou. E se aproximou de mim como uma amiga de infância que há tempos não via. Eu tentei ignorá-la, eu tentei continuar o trajeto que já havia começado: em vão. Um milissegundo e me esqueci de tudo e ali estava ela. E onde estava eu? Esse tempo todo e onde estava eu? Eu a vi por tão pouco tempo e me esqueci — e me achei —, mas não a esqueci. Suas cores reverberaram por todos os canyons de minha mente, em anos, em um segundo. Nunca havia visto aquelas cores antes. Cores esdrúxulas, simples, lindas cores; será que só eu percebia?

Ela voou, voou, cambaleante — pois assim são as borboletas, mesmo esta —, mas, diferente das outras, ela não se afastou de imediato. Esta era distinta, esta tinha sua própria personalidade, tinha suas próprias cores, que ela mesma havia manufaturado. Tentei vê-la, olhei para ela. Mas ela não parava de se mexer, não se podia vê-la. Estiquei, instintivamente, meu braço e um dedo; ela percebeu meu erro, mas ainda assim pousou. Pousou e pude vê-la. E a vi, e ainda a vejo daqueles tempos, pois não a vejo mais. Naquele dia eu caí, e não consegui mais me levantar.

Borboleta, borboleta, voou, voou, pousou no meu dedo, tocou meu coração. Borboleta, aqui estou, aqui estou, cansado da vendeta e com saudade da razão. Borboleta, borboleta, teu vôo é uma graça, me empresta tuas asas pra eu poder saber o sabor. Borboleta, tuas cores são perfume, mas me tira da hipnose de querer ter teu amor.

5 de out. de 2008

Hoje

Hoje é o amanhã de ontem.

O tempo urge, ruge, urgentemente surge e some nas pétalas da rosa. Nos filmes do cinema, nos passeios pela praia. Nas alvoradas, nas tempestades, nos dias em que falta energia em casa. No engarrafamento, no escovar dos cabelos, no arrumar de roupas, no arrumar das coisas, no se preocupar com as coisas. O tempo some. Para nós. Para nosso consciente. Superconsciente, inconfidente.

Ontem é só um dos dias do mês passado no mês que vem.

Ficará arquivado nas pastas inacessíveis de nossa memória? Só o subconsciente sabe. E sabe inconscientemente, ecoando, escoando. Aquelas pessoas desconhecidas de nossos sonhos são as pessoas que nós não chegamos a conhecer. Mas nós já as vimos, em ruas, em estradas. De relance na calçada. Nos ônibus, nas filas dos cinemas. Nós já vimos e decoramos por completo sua aparência, mas não temos nada com que ligá-las em nossa memória. Sem nomes, sem preferências, sem frases, sem jeitos de falar, de andar ou de fazer as coisas. São arquivos mandados para a lixeira mas não deletados do computador.

Amanhã é o dia depois de hoje do ontem.

Se eu pudesse voltar no tempo eu não poderia voltar no tempo, então eu não voltaria no tempo. Mas se eu pudesse voltar no tempo sem não poder voltar no tempo, eu voltaria e me mudaria. Não poderia prever nada além do primeiro evento que mudasse, mas talvez bastasse mudar um evento para melhorar tudo, quem sabe todos. Esperaria que todas também. Mas eu sentiria as mudanças? As mudanças seriam para mim, quando eu voltasse — se eu pudesse voltar?

Hoje é o dia para o qual você não quer acordar, ontem é o dia que você quer mudar hoje e amanhã é o motivo pelo qual você não queria acordar ontem.

O tempo urge, o tempo ruge; ficamos surdos, assustados. O tempo passa mais veloz que a luz. Você não sente o tempo, não de imediato. Ele se acumula nas suas células até elas explodirem de tanto tempo acumulado. Então você se olha no espelho e vê você. O mesmo de ontem, talvez. Você só era você há pouco tempo, você não era aquela criancinha de 8-9 anos. Você nunca foi um bebê que não sabia falar. Você não sabe que foi. Pessoas lhe disseram que você foi. Mostraram fotos, evidências. Elas estavam lá. Mas, até onde você sabe, você nunca esteve lá com elas. Mesmo assim, mesmo vendo você mesmo no espelho, você pensa que mudou. "Estou mais velho", "estou mais feio", "estou menos atraente".

E está. Mas só porque você notou.

1 de out. de 2008

Ensaio dos últimos momentos.

Olhou para o horizonte e viu o mar infinito de palavras indizíveis que habitavam seus pensamentos nos momentos de solidão.

Uma gaivota pescou uma baleia e voou para longe.

Centenas de navios derramavam petróleo nas águas daquele mar — seu mar. E chorou com a corrupção daquelas palavras — indizíveis, mas queridas palavras, pensamentos, dúvidas, sonhos, momentos, criações.

O mar escurecia, agora. Veias negras se alastravam por entre as ondas, desafiando-as. Trovões rasgaram o céu como um grito de desespero, clemente. Nuvens negras aproximavam-se para demonstrar sua insatisfação com o ocorrido enquanto o sol se escondia com medo de que o apagassem. Peixes tentavam, sem êxito, a fuga daquele lugar que não mais existiria.

Viveria em terra. Para sempre. Sem jamais rever o mar. Ele mesmo despejara o petróleo e assistia agora a catálise desta parte do seu mundo. Sim, pois aquele era seu mundo, e os ventos dali gritavam por liberdade, enquanto choviam pedidos de socorro que ele ignorava, surdo. Surdo, mas ajoelhado à visão da mudança que provocara.

A gaivota vomitou os ossos da baleia que acabara de devorar e afogou-se nas águas pútridas do mar corrompido.

Levantou-se, enxugou as lágrimas e deu as costas ao mar, sem palavras de despedida. As últimas ondas cristalinas que restavam tentaram abraçá-lo uma última vez, mas ele fingiu que nada acontecia.

Uma só ilha naquele mar permanecera limpa; o sol se escondera nela. Suas palavras mais importantes, estavam todas ali. Todas as que ele mais queria esquecer.

Ainda chovia no seu mundo — a chuva só pararia quando ele voltasse ao mar, àquela ilha única de memórias que ele quis esquecer, e se lembrasse que era ali que jazia seu coração.